Chambon-Sur-Lignon é um pequeno povoado localizado no sudeste da França, no alto do rio Loire e próximo da fronteira com a Suíça. A comuna ao sul possui hoje em torno de 2600 habitantes e na década de 40 tinha pouco mais de 3000. Desde o século XVI a cidade era tradicionalmente huguenote, estando nos territórios de influência protestante durante as Guerras Religiosas (1562-1598).
Em 25 de dezembro de 2020, o austríaco Eric Schwam faleceu aos 90 anos e deixou a enorme quantia de 2 milhões de euros (12,6 milhões de reais) como doação ao vilarejo, símbolo de sua gratidão. Mas o que teria movido o farmacêutico aposentado a esse ato? Hoje você verá como a hospitalidade e a empatia transformam pequenos povos em grandes resistências contra a morte e a tirania.
Os horrores da guerra
A Segunda Guerra Mundial (1939-45) foi o conflito mais sangrento da humanidade. As estimativas são de 75 milhões de mortos, sendo 30 milhões apenas de civis mortos devido a atividades militares ou crimes contra a humanidade. O Eixo, formado até então pela Itália e Alemanha, tomou a França em junho de 1940 e mostrou sua grande força militar e sagaz estratégia bélica. O país que antes fazia parte dos Aliados junto da Inglaterra passou a ser continuamente ocupado ao norte pelos exércitos nazistas, enquanto o sul formou o Estado Francês, submisso ao Reich Alemão, comandado pelo Marechal Pétain que colaborava com Hitler.
A partir de 1941, o genocídio contra judeus europeus já havia se iniciado, movidos pela política antissemita encabeçada pelo ditador alemão. Muitos judeus eram internados antes de serem mandados aos campos de concentração, destino que teria sido o mesmo da família de Eric Schwam, judeus austríacos vindos de Viena que partiram a Bruxelas após a anexação de seu país pela Alemanha. Por volta de 1942, foram mandados ao campo de concentração em Rivesaltes e de alguma forma não conhecida, conseguiram partir ao vilarejo de Chambon-sur-Lignon, possivelmente auxiliados por uma enfermeira que trabalhava com o pai de Eric, Oskar Schwan, médico da região.
O pequeno vilarejo abrigava refugiados protestantes desde o século 16 e a partir da década de 30 passou a acolher espanhóis fugitivos da Guerra Civil (1936-1939), como Lluis Pepito Gausachs, futuro secretário do presidente catlão. Um dos nomes da generosidade é Juliette Usach, uma protestante catalã que atuou como médica na casa de La Guespy, destinada a cuidar das crianças judias e não-judias refugiadas no vilarejo.
A localização deles no Planalto de Vivarais os favorecia visto que dificultava o acesso militar, tornando o terreno um abrigo seguro a todos os necessitados. Até 1942, o vilarejo estava na Zona Não-Ocupada da França, porém, as incursões recentes da França de Vichy, estado-fantoche do governo alemão, mudaram essa situação.
Justos entre as nações
Ninguém perguntava quem era judeu e quem não era, ninguém perguntava de onde a gente vinha, e ninguém perguntava sobre nossos pais ou se poderíamos pagar. Eles simplesmente nos acolheram, recebendo-nos com afeto e abrigando as crianças, geralmente sem seus pais – crianças que choravam à noite porque tinham pesadelos.
Elizabeth Koenig-Kaufman, refugiada quando criança.
André Trocmé era pastor da Igreja Reformada da França, a continuação denominacional dos huguenotes. Junto de sua esposa Magda Trocmé e seu pastor assistente Edouard Theis, liderou um movimento local onde todos os habitantes ofereciam abrigos aos fugitivos em suas casas, hotéis, fazendas, orfanatos e escolas, independente se o necessitado retribuiria com sua renda ou não.
Ainda em 1940, André buscou recurso junto dos Quakers para auxiliar os 30.000 judeus mantidos em campos de concentração no sul da França, estabelecendo laços com Burns Chalmers para libertar alguns cativos. Junto dele e de outros apoiadores, conseguiu acolher especialmente crianças no vilarejo de Chambon e nas cidades ao redor, contando com o auxílio da Oeuvre de Secour Aux Enfant (OSAE), uma organização franco-judaica destinada a ajudar crianças judias. As moradias foram mantidas pelos quakers, congregacionalistas, a Cruz Vermelha e o governo da Suécia, contando sempre com o apoio popular movido por ele. Todo esse suporte permitiu que em torno de 3.500 judeus fossem resgatados, sendo 5.000 o número total de refugiados.
O lema de André era para sempre abrigarem o “povo da Bíblia”, vendo os judeus como um povo especial que havia recebido os mandamentos do Senhor (Rm 3:2). Seguindo o mandamento de amor de Jesus Cristo, eles amaram uns aos outros como o Senhor os amou (Jo 15:12), agindo como o bom samaritano que cuidou do ferido na estrada (Lc 10:30-37). Ao cuidar dos seus semelhantes, assim cuidaram diante do Senhor, pois o que são caridosos aos carentes agem com amor a Deus (Mt 25:34-40).
Muitos deles se voluntariavam a cruzar 300 quilômetros de distância até a Suíça para que ali os judeus se estabelecessem em definitivo, tendo em vista a neutralidade do país, trajeto auxiliado pelo Comité Inter-Mouvmentes Auprès des Évacués (CIMADE), buscando rotas de fuga para a nação suíça. A rota era semelhante a que foi seguida pelos valdense e huguenotes, minorias religiosas perseguida séculos antes e que mostra como o espírito de solidariedade impregnou-se no povo após séculos de sofrimento.
O auxílio aos judeus por quase quatro anos tornou impossível de não ser notado e as autoridades de Vichy tornaram-se cientes disso. Em uma das incursões contra o vilarejo, em 29 de junho de 1943, 18 jovens refugiados foram levados, onde 5 deles eram judeus que foram enviados para morrer em Auschwitz. O primo do pastor, Daniel Trocmé e o médico Roger Le Forestier foram igualmente assassinados, o primeiro sendo exportado ao campo de concentração Lublin/Majdanek e o segundo morto a tiros na prisão de Montluc sob ordens da Gestapo. Toda a população corria sério risco de vida ao prestar seu auxílio aos carentes.
Ao ser interrogado sobre suas ações, André respondeu:
“Essas pessoas vieram aqui para ter ajuda e asilo. Eu sou seu pastor. Um pastor não abandona seu rebanho. Eu não sei o que um judeu é, eu apenas conheço seres humanos”.
O ministro exortava sua congregação a sempre demonstrar amor ao próximo, usando de Dt 19:2-10 para mostrar a necessidade de cidades de refúgio. Fortaleceu os fiéis depois que ministro George Lamirand visitou a cidade em 15 de agosto de 1942, buscando examinar a “situação ilegal”. Trocmé sustentou firme sua posição e dias depois, guardas vieram a cidade, preparando-se para um expurgo, mas por uma intervenção divina a missão falhou: o ministro recebeu um mandato de prisão e os guardas seriam mandados de volta.
A cidade possuía um foco especial por também abrigar membros da resistência contra o nazismo, como Léon Eyraud, amigo de André que coletava informações escondidas sobre o exército alemão, caso houvesse necessidade de um combate armado.
Em fevereiro de 1943 o pastor foi preso junto com seu reverendo auxiliar Edouard Theis e o professor Roger Darcissac, sendo internados no campo de Saint-Paul dÉyjeaux. Ali ficou por 5 semanas, pressionado a assinar um tratado confirmando sua obediência ao governo. Recusando-se a sucumbir, viria a ser solto após nada conseguirem contra ele, tendo que se esconder das autoridades para não ser morto e passando a liderança a sua esposa, Magda.
Sua ausência, contudo, não afetou a determinação do povoado que permaneceu recebendo judeus em suas casas e permitindo-lhes viver em relativa paz até que a guerra acabasse, transformados por sua pregação e liderança mas acima de tudo pelo exemplo de amor de Cristo Jesus.
André e sua esposa uniriam-se a Irmandade Internacional da Reconciliação após a guerra e apoiariam a independência da Algéria, até que o pastor falecesse como pastor reformado em Genebra.
Reconhecimento
Graças a esses esforços, o memorial Yad Vashem, ligado ao Estado de Israel, reconheceu André Trocmé e sua esposa como Justos entre as nações, o primeiro em 1971 e a segunda em 1984, assim como todo o povoado em 1990. O título é dado a todo não-judeu (gentio) que cumpre as Sete Leis de Noé, ou seja, segue os princípios básicos da moralidade e auxilia o povo judeu de alguma forma.
O presidente francês Jacques Chirac reconheceu o heroísmo do vilarejo em julho 2004, realizando uma homenagem a eles em janeiro de 2007 no Panteão de Paris.
Placa em homenagem ao socorro prestado pelo vilarejo, Lieu de Mémoire au Chambon-sur-Lignon, França – European Comission
O vilarejo de Le Chambon é um grande exemplo como um pequeno número de pessoas, reunidas por uma causa comum honrosa e valorosa para lutar a favor, são capazes de promover a diferença. Com toda a certeza, Eric Schwan foi apenas uma das centenas de crianças socorridas por esses bravos huguenotes que merecem ser lembrados por sua caridade e exemplar hospitalidade.
Graça e paz a todos vocês,
Luigi Bonvenuto
FOTOS:
Bíblia do pastor André Trocmé, com anotações suas. Está escrito “Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão saciados”. US Holocaust Memorial Museum.
O pastor André Trocmé junto de sua esposa Magda
O pastor auxiliar Édouard Theis
Grupo de crianças judias refugiadas, Ago. 1942. US Holocaust Memorial Museum.
Crianças acolhidas por Daniel Trocmé (ao fundo, no centro, com óculos), primo do pastor, na casa Maison des Roches. Daniel seria morto meses depois. 1941-1943. US Holocaust Memorial Museum.
Diário de uma das crianças judias acolhidas, tendo a foto de seus pais mortos em campo de concentração ao lado esquerdo inferior. 1942-1943. US Holocaust Memorial Museum.
“Austrian man leaves ‘large amount’ to village that saved family from Nazis. BBC, 29 de jan, de 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-europe-55863061. Acesso em: 22 de ago. de 2021