O período medieval é tido por muitos protestantes apenas como a época obscura onde a Igreja se corrompeu e perdeu a verdade que haveria de ser resgatada na Reforma. Com certeza, muitas superstições surgiram ao longo dos séculos mas a verdade não estava completamente perdida e nem tudo deve ser descartado, como também nem todas as práticas detinham universal aprovação.
Dentre as mais contestadas pelos reformadores está a veneração de imagens, o ato de pintar imagens que representem santos, anjos ou o próprio Cristo e honrá-las com devoção, sob a defesa de que a veneração se dirige primariamente ao que é representado e não a imagem em si. Segundo João Damasceno (675-749), defensor dos ícones no século VIII, “Dê a elas [as representações] toda a persistência da gravura e da cor. Não tenha medo ou ansiedade; nem toda veneração é igual (…) Adorar é uma coisa, veneração é outra. Há diferentes graus de adoração” [1]
Nem todos, porém, concordavam com essa explicação. Entendiam que essa distinção era tênue quando se referia ao que as pessoas efetivamente faziam diante das imagens e que não havia suporte na Escritura para toda a honra dada a elas.
Isso despertou um movimento conhecido como iconoclasmo, gerando uma controvérsia que perdurou entre os séculos VIII e IX. Embora centrada no Oriente, o Ocidente não aceitou de primeira a definição de veneração feita no Concílio de Niceia II (787) e um dos grandes opositores foi Cláudio de Turim (780-827).
Nascido na Espanha, passou três anos como capelão na corte do imperador carolíngio Luís, o Pio (813-840), compondo parte da elite intelectual e teológica responsável por discutir questões eclesiásticas e apoiar através da Escritura o governo dos francos. Em 816, assumiu o bispado de Turin, na Itália e passou por muitas dificuldades na congregação e na defesa contra os sarracenos.
Sua revolta se iniciou quando encontrou as igrejas repletas de imagens e de pessoas trazendo a elas oferendas, uma atitude condenável ao seu ver. Defendia que os olhos se voltassem não a coisas terrenas, mas aos céus, buscando o espiritual. A veneração de relíquias e imagens movia a mente dos fiéis erroneamente ao mundo material apenas [2]
“O bispo também disse que peregrinações a Roma eram inúteis e, segundo alguns testemunhos oculares, recusou-se a celebrar os dias de festa dos santos, a recitar as litanias e invocar os nomes dos santos na liturgia. Além disso, ele proibiu o acender de velas e lâmpadas nas igrejas durante o dia, assim como certos gestos como prostrar e o abaixar dos olhos durante a oração; ele ordenou aos cristãos em sua diocese a elevar os olhos aos céus ao invés disso” [3]
Traçou a veneração de imagens e adoração dos santos a uma tendência pelagiano e as confrontou com a visão agostiniana da soberania da graça divina, afirmando que os escritos de Paulo derrubam os méritos humanos e exaltam a graça de Deus, condizente com sua visão de graça soberana apresentada nos comentário a gálatas.
“Ele baniu as imagens, cruzes e crucifixos das igrejas, como o único meio de matar a superstição. Ele também se opunha fortemente as peregrinações. Ele não possui apreciação pelo simbolismo religioso e foi em seu zelo puritano a um extremo fanático” [4]
A opinião de Schaff aponta como ele foi visto pelos seus contemporâneos, desenvolvendo sobre si a imagem de portador da palavra de Deus e pregador da verdade em meio a tantos opositores, um guerreiro em prol da verdadeira religião (p.72). Sua opinião, porém, não era completamente isolada. Agobardo de Lião (779-840) também detinha uma visão inferior sobre as imagens e o tema foi discutido em concílios regionais mas nunca com o radicalismo de Cláudio.
Sua obra Apologeticum (“Apologia”) foi escrita 824 e 827 em resposta a uma carta de Teutmirus que confrontou seu antigo mestre por sua posição quanto as imagens. O estilo literário lembra os apologistas dos primeiros séculos, apresentando a verdadeira fé ao mesmo tempo que contesta as objeções dos adversários e zomba de suas crenças absurdas.
Dungal de Bobbio (d. 828) se tornou seu maior opositor e foi responsável por destruir sua reputação diante de outros bispos ao ponto de ser negado a ser chamado cristão e injustamente acusado de adocionismo e arianismo. Ainda assim, nunca foi oficialmente condenado e permaneceu publicando seus comentários bíblicos sobre quase toda a Escritura até sua morte em 827.
Desconheço uma tradução em português de sua apologia e trago a tradução de um excerto de sua obra feita por mim com base na versão em inglês realizada por Thomas Head, traduzida do latim. O nome da obra original estará na bibliografia.
Apologia
Eu recebi de alguns mensageiros grosseiros sua carta com o tratado anexado, cheio como são com tagarelices e tolices. No tratado você diz que está perturbado com o que Rumor está dizendo sobre mim da Itália, por toda a Gália e até as fronteiras da Espanha, insinuando que eu estou pregando alguma seita nova contra a regra da fé católica. A acusação é de todas as maneiras a mais falsa. Não é surpreendente que estes membros do Diabo, que proclamaram nosso Cabeça (possivelmente o Papa) como sedutor e demoníaco, digam tais coisas sobre mim. Pois não sou eu que estou ensinando uma seita, eu que mantenho a unidade da fé e proclamo sua verdade. Na medida em que fui capaz, eu verifiquei, contive, lutei e subjuguei as seitas, cismas, superstições e heresias; na medida em que ainda sou capaz, não cessarei de confiar plenamente na ajuda de Deus. Sucedeu que, depois que fui compelido a assumir o fardo do ofício pastoral vim à cidade de Turim na Itália, enviado por Luís, o piedoso príncipe e filho da Santa Igreja Católica do Senhor, eu encontrei todas as igrejas cheias de imagens sórdidas, que são anatematizadas e contrárias ao verdadeiro ensinamento. Visto que todos estavam honrando-as, eu assumi sozinho a sua destruição. Então todos abriram suas bocas para me amaldiçoar e, se o Senhor não tivesse Senhor me ajudado, eles teriam me engolido vivo (…)
Aqueles contra quem nós assumimos a defesa da igreja de Deus dizem, “Não não pensamos que há qualquer coisa divina inerente à imagem que nós adoramos. Nós adoramos com tal veneração apenas para a honra daqueles cuja semelhança possui”. Nós respondemos que, se as imagens dos santos são agora veneradas por aqueles que renunciaram ao culto do Diabo, eles não renunciaram seus ídolos, mas apenas mudaram seus nomes. Pois se vocês inscrevem numa parede ou pintam imagens de Pedro e Paulo, ou Júpiter e Saturno, ou até mesmo de Mercúrio, essas imagens não são deuses, nem são elas os apóstolos, não são nem sequer homens, apesar da palavra ser transformada a esse propósito. O erro, tanto antes quanto agora, permanece sempre o mesmo. Certamente se homens deveriam ser adorados, são os vivos e não os mortos que deveriam ser adorados. Nos vivos há a semelhança de Deus, não a semelhança de gado, ou pior, de pedras ou madeira, que são privadas de vida, sentido e razão. A partir deste pensamento deve ser concluído que, se as obras da mão de Deus não devem ser adoradas ou honras, menos ainda as obras das mão humanas devem ser adoradas ou reverenciadas, nem mesmo honradas pelo bem daqueles cuja semelhanças são ditas serem. Se a imagem que alguém adora não é Deus, menos ainda deve ser venerada pela honra dos santos, que nem um pouco arrogaram a si honras divinas (…)Por que você se faz humilde e se curva diante de imagens falsas? Por que você inclina seu corpo, cativo diante estátuas tolas e imagens terrenas? Deus o fez ereto. Enquanto outros animais tem postura prona e de rosto a terra, você tem um status sublime e é ereto, voltado ao céu e a face de Deus. Olhe para cima, vire seus olhos para cima, busque Deus nas coisas celestiais, para que então se torne capaz de evitar o que há abaixo. Eleve seu coração duvidoso as alturas celestiais. Por que você se atira no colo da morte com esta imagem inanimada que você honra? Por que você cai na ruína do diabo através dela e com ela? Preserve o status sublime no qual você nasceu. Persevere no modo como foi feito por Deus.Aqueles que pertencem a falsa religião e a superstição dizem, “A fim de recordar nosso Salvador nós honramos, veneramos e adoramos uma cruz pintada feita em sua honra”. Nada os agrada sobre nosso Salvador, exceto o que também agradava os ímpios, isto é, a desgraça de sua paixão e sua zombaria da morte. Eles acreditam naquilo que ímpios, tanto judeus como pagãos que até duvidam de sua ressurreição, também acreditam. Eles não aprenderam a pensar sobre ele em qualquer outro modo senão acreditando e tendo-o em seus corações como retorcido, morto e sempre contorcido em sua paixão. Eles também não ouvem nem entendem o que o apóstolo disse, “Nós conhecemos a Cristo segundo a carne, contudo agora não o conhecemos mais deste modo” (2 Co 5.16).
A resposta a eles é esta, se eles desejam adorar toda a madeira feita na forma de uma cruz, visto que Cristo foi pendurado de uma cruz, então a mesma coisa deve ser feita a memória de muitas outras coisas que Cristo fez na carne. Pois ele foi pendurado na cruz por seis horas, mas ele estava no ventre da virgem por seis meses lunares e mais onze dias mais, o que é o mesmo que duzentos e setenta e seis dias solares, isto é, nove meses e mais seis dias. Portanto, deixem as moças virgens ser adoradas, visto que uma virgem portou Cristo. Deixem as manjedouras serem adoradas, visto que ele foi deitado em uma manjedoura logo depois de nascer. Deixem o linho velho ser adorado, visto que quando ele nasceu, foi envolto em tais linhos velhos. Deixem os barcos serem adorados visto que ele frequentemente velejava em barcos e ensinava as multidões a partir de um pequeno barco, dormia num barco, comandava os ventos de um barco e foi ao lado direito de um barco que ele ordenou que colocassem as redes, quando aquela grande, profética, pesca de peixes foi feita…. Finalmente, deixem as lanças serem adoradas, visto que um dos soldados na cruz abriu seu lado com uma lança e daquela ferida fluiu sangue e água, os sacramentos pelos quais a Igreja é formada. Essas coisas são todas piadas e deveriam ser ridicularizadas em vez de escritas, mas nós somos forçados a propor coisas tolas contra os tolos e desferir golpes pedregosos quando corações de pedra, em vez de flechas de palavras e opiniões. “Retornem, transgressores, ao coração” (Is 46.8). Vocês se afastaram da verdade, buscaram vaidade e se tornaram vãos. Vocês crucificam de novo o Filho de Deus e o elevam para ser exposto. Assim vocês fizeram as almas dos humildes companheiras dos demônios. Alienando-os através do ímpio sacrilégio das estátuas, vocês os fizeram ser rejeitados pelo seu criador e os lançaram a condenação perpétua.
Porque Deus ordenou uma coisa e eles fazem outra. Deus lhes ordenou carregar a cruz, não adorá-la. Eles desejam adorá-la ao invés de carregá-la num sentido espiritual ou corporal. Honrar a Deus dessa maneira é se afastar Dele, pois Ele disse, “Se alguém quiser me acompanhar, negue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mateus 16.24). A não ser que alguém renuncie a si mesmo, não se aproximará Daquele que está acima dele, nem é capaz de compreender o que está além dele se não sabe como fazer sacrifício.
Quando você diz, como você certamente disse, que eu proíbo homens de ir a Roma por causa da penitência, fala falsamente. Eu nem aprovo nem desaprovo essa ação, visto que eu sei que nem atrapalha e nem é útil a alguém, não traz proveitos a ninguém nem os obstrui. Se você pensa que ir a Roma é buscar penitência, então eu primeiro pergunto a você por que perdeu tantas almas em tão curto tempo, almas que você reteve em seu monastério, ou que por causa da penitência, recebeu em seu monastério e não enviou a Roma e até mesmo as fez servi-lo. Você diz que tem um grupo de cento e quarenta monges, todos os quais vieram a você por causa da penitência. Eles se voltaram ao seu monastério e você não permitiu nem um deles ir a Roma. Se essas coisas são assim – se, como você diz, ir a Roma é buscar penitência – o que fará sobre essa opinião dita pelo Senhor, “Aquele que escandalizar um destes pequenos que creem em mim, seria melhor a ele que uma pedra de moinho fosse pendurada em volta de seu pescoço e que ele se afogasse no fundo do mar” (Mt 18.6). Não há escândalo maior do que proibir um homem de seguir o caminho pelo qual ele é capaz de viajar ao gozo eterno.
Nós sabemos, segundo o Evangelista, que as palavras do Senhor salvador não foram entendidas, quando ele disse a Pedro, “Você é Pedro e sobre esta pedra eu vou construir minha igreja e te darei as chaves dos céus” (Mateus 16.18-19). Por causa destas palavras ditas pelo Senhor, a raça dos homens ignorantes, tendo desprezado o entendimento de todas as coisas espirituais, desejam ir a Roma a fim de obter a vida eterna. Aquele que entende as chaves do reino dos céus como dadas acima não exige que a intercessão do abençoado Pedro seja limitada a um local. Se nós sutilmente considerarmos o sentido apropriado das palavras do Senhor, não foi dito por ele, “O que quer que que você desligar no céu será desligado na terra e o que quer que você ligar no céu será ligado na terra”? Disso sabe-se que que o ministério é garantido aos supervisores da igreja apenas enquanto eles estão em peregrinação no corpo mortal. Quando eles pagarem a dívida da morte, aqueles que os sucederem em seu lugar obterão o mesmo poder judicial, como está escrito, “Em lugar dos teus pais, estarão teus filhos; você os fará príncipes sobre toda a terra” (Salmos 45.16; 44.17) (…) Ouçam, vocês que são tolos entre o povo e vocês que uma vez foram tolos e buscaram a intercessão do apóstolo indo a Roma (…)
[Você objeta] contra mim que o senhor apostólico está bravo comigo – você também diz que está desagradado comigo. Você disse isso de Pascoal*, bispo da igreja romana, que desde então partiu desta vida presente. Um homem é dito ser apostólico quem é guardião do apóstolo ou que exercita o ofício de um apóstolo. Certamente um homem não deveria ser chamado apostólico quem apenas se assenta no trono apostólico, mas quem realiza o ofício. O Senhor disse sobre aqueles que ocupam um lugar, mas não realizam o ofício, “Os escribas e os fariseus se assentam na cadeira de Moisés. Todas as coisas, portanto que eles disserem a vocês, obedeçam e façam; mas quanto às suas obras, não as façam. Pois eles dizem e não fazem” (Mt 23.2-3)
*Papa Pascoal I (817-824), responsável por censurá-lo e se opor a suas ideias.
Defense Against Those Who Oppose Holy Images by St John of Damascus. Trans. Mary H. Allies. Abridged, modernized and introduced by Stephen Tomkins. Edited and prepared for the web by Dan Graves. Disponível em: https://christianhistoryinstitute.org/study/module/john-of-damascus
RAAIJMAKERS, Janneke. “I, Claudius. Self-styling in early medieval debate”. Early Medieval Europe, v.25, n.1, p. 70-84, Jan. 2017