A maldade perpétua
O Nosso Criador nos fez em um estado de perfeita pureza, “a sua imagem e semelhança” (Gn 1:26), prontos para governar sobre a terra de forma parecida com o governo de Deus sobre o mundo. Após a Queda, contudo, o mal se apoderou da humanidade foi transmitido hereditariamente pelas gerações, despertando-se desde o princípio, pois “seu coração é inteiramente inclinado para o mal desde a infância” (Gn 8:21). A mácula arrancou de nós o caráter cristalino e tomou conta de todas as criaturas pelo fato de nascermos da carne e sermos naturalmente opostos ao Espírito (Jo 3:6), mortos em Adão, o nosso representante (Rm 5:12,17-19).
O seu delito não foi apenas individual, pois em seu cargo como cabeça da humanidade, todos os seres humanos pecaram com ele no ato que nos condenou e nos submeteu ao poder das trevas, sendo impossível nascer sem a mácula anterior (Jó 4:18). “Em Adão todos morrem” (1 Co 15:22a), uma extensão terrível expressa nas palavras de Calvino:
Adão foi feito o depositório dos dotes que Deus se agradou em conceder a natureza humana, portanto, quando ele perdeu o que recebeu, perdeu não só por si mesmo mas por todos (…) O pecado original é a corrupção hereditária e depravação de nossa natureza, estendendo para todas as partes da alma e que primeiramente nos torna odiosos diante da ira de Deus [2]
O rei Davi em seu momento de aflição expressou “Sei que sou pecador desde que nasci, sim desde que me conheceu minha mãe” (Sl 51:5). Esse verso é profundo pois é o ele é o mesmo que diz “tu mesmo me tiraste do ventre; deste-me segurança junto ao seio de minha mãe. Desde que nasci fui entregue a ti; desde o ventre materno és o meu Deus” (Sl 22:9-10). Como pode nascer em iniquidade e ao mesmo tempo pertencer a Deus?
O salmista lamenta melancolicamente que “Corromperam-se e cometeram atos detestáveis; não há ninguém que faça o bem. Todos se desviaram, igualmente se corromperam; não há ninguém que faça o bem, não há um sequer” (Sl 14:1,3). O sábio Salomão foi um dos mais enfáticos quanto a veracidade da corrupção humana. “Quando pecarem contra ti, pois não há ninguém que não peque” (2 Cr 6:36); “Todavia, não há um só justo na terra, ninguém que pratique o bem e nunca peque” (Ec 7:20). O profeta Isaías afirma veementemente, “Não há ninguém que clame pelo teu nome, que se anime a a apegar-se a ti, pois escondeste de nós o teu rosto e nos deixaste perder por causa de nossas iniquidades” (Is 64:7), todos corroborando para a crença do inevitável definhamento da raça humana.
O apóstolo Paulo, no capítulo 3 de Romanos, passa do versículo 9 ao 19 ressaltando a ruína dos homens e sua injustiça diante de Deus, uma das passagens mais fortes referentes a nossa depravação e que provam a inexistência da liberdade um dia concedida ao homem em estado pristino, restando-nos apenas maléfica submissão. A.W. Pink, em sua magnificente obra quanto a depravação, declara:
“O homem não é mais como Deus o fez. Ele perdeu a coroa e a glória de sua criação, mergulhando em um terrível abismo de pecado e miséria. Por sua própria perversidade ele arruinou-se a si mesmo e estabeleceu uma consequência de aflição a sua posteridade. Ele é uma criatura destruída como resultado de sua apostasia de Deus“ [3]
A gravidade de nossos pecados
Após contemplar a nossa maldade, “o Senhor viu que a perversidade do homem tinha aumentado na terra e que toda a inclinação dos pensamentos do sue coração era sempre e somente para o mal” (Gn 6:5). Isso entristeceu-o profundamente ao ponto o fazer se “arrepender” da raça humana, tão forte como se tivesse desejado que jamais tivéssemos existido por causa de nossa maldade.
Esse estado de pessimismo é melancolicamente retomado nos Salmos, quando é dito “Corromperam-se e cometeram injustiças detestáveis; não há ninguém que faça o bem. Todos se desviaram, igualmente se corromperam; não há ninguém que faça o bem, não há nem um sequer” (Sl 53:1,3). O pecado é uma ofensa gravíssima pois Deus é Soberano e Criador de todas a coisas, a quem devemos puramente honra e louvor, propósito pelo qual fomos criados (Rm 11:36; 1 Co 10:31). O Senhor não suporta ver maldade (Hc 1:13), diante dele nem sequer os céus são puros plenamente (Jó 15:15), que dirá de nós, possuindo Ele um aspecto irrecusável de justiça. Descrevendo o pensamento de Anselmo de Cantuária, González escreve que “O pecado é uma ofensa contra o Senhor infinito, e, portanto, o mínimo pecado é uma ofensa infinita” [4]. Por essa razão, Tiago afirma que aquele que tropeça em apenas um ponto da Lei é culpado de transgedi-la por completo (Tg 2:10), tendo falhado em render a Deus as graças necessárias e desvirtuado as capacidades que lhe foram dadas. Isso é o que torna o pecado tão grave, um ataque hostil e venenoso contra o Supremo Juiz, tornando-nos réus de nossas más obras e escravos de um regime de opressão ressaltado pela santa Lei de Deus (Rm 6:17a; 7:14), a qual nos sentencia a maldição por desobediência (Gl 3:10). O pecado portanto consiste na transgressão do alto padrão instituído por Deus para a humanidade (1 Jo 3:4) e na consequente desonra trazida em sua obra, embora não a corrompa por inteiro.
A gravidade foi tamanha que nosso livre-arbítrio voltou-se única e completamente para o mal; embora a capacidade do arbítrio permanecesse boa, como articulado por St. Agostinho, seu uso passou a ser continuamente voltado para a oposição a Deus até que Ele o regenerasse pelo Espírito Santo.
”Logo, depois do pecado, ele [Adão] foi levado ao exílio e por causa do pecado, toda a raça a qual ele deu origem foi corrompida nele e, assim, submetida à pena de morte. E tanto é assim que todos os descendentes de sua união com a mulher que o levou ao pecado, que foram condenados ao mesmo tempo com ele — por serem produtos da concupiscência carnal na qual o mesmo castigo de desobediência se inflige —, foram maculados pelo pecado original e levados depois de muitos erros e sofrimentos até o derradeiro e eterno castigo que sofrem em comum com os anjos pecadores, seus corruptores, senhores e co-participantes da condenação” [5]
Efeitos e julgamento da depravação
A depravação tornou-nos cativos do Diabo (2 Tm 2:26; Jo 8:44) e portanto servidores de sua vontade, escravos do pecado sem qualquer liberdade para fazer o bem (Jo 8:34) . Tornamo-nos incapazes de agradar a Deus por sermos dominados pela carne (Rm 8:8), capazes apenas de produzir obras que dela procedem por ser a nossa origem (Gl 5:19-21; Jo 3:6). Fomos entregues a uma série de indecências procedentes de nosso coração pecaminoso que apenas aumentaram a nossa culpa diante do Santo, uma dívida em crescente espiral e ilimitada (Mt 15:19; Rm 1:24-31). Tivemos nossos nossos próprios conceitos sobre Deus pervertidos a um estágio quase irrecuperável se não fosse pela revelação geral (Rm 1:19-21), visto que a Escritura diz que “Ele [Deus] nos entregou a uma disposição mental reprovável” (Rm 1:28).
Nas palavras do Apóstolo Paulo, “vemos apenas por um reflexo obscuro” (1 Co 13:12), incluindo as coisas gloriosas, assolando sobre nós cegueira e perdição suficientes para romper o discernimento espiritual (1 Co 2:14). “Ainda que ele tenha algum discernimento do bem e do mal, entretanto, a luz que nele subsiste se tornou em trevas no que diz respeito à sua procura por Deus, de sorte que ninguém pode se aproximar de Deus por sua razão ou inteligência” [6]
O pecado não só consome nosso ser mas impede-nos de reconhecer tamanho estado de malignidade enquanto por ele somos dominados, não tendo ciência de nada além de seu próprio estado deturpado. “Para os impuros e descrentes, nada é puro. De fato, tanto a mente como a consciência deles estão corrompidas” (Tt 1:15). Ryle esclarece que nós, “criaturas pobres e cegas, hoje aqui e amanhã acolá, nascidos no pecado, cercados de pecadores, vivendo em uma constante atmosfera de fraqueza, enfermidade e imperfeição – não podemos formar senão os mais inadequados conceitos sobre a hediondez do pecado” [7].
Tornados mortos em nossos delitos e pecados (Ef 2:1) como fomos, a mensagem da cruz aparenta-nos mera loucura (1 Co 1:18) e assim permanece sem a regeneração vinda de Deus. O sacrifício de Cristo não possui qualquer valor diante do perdido que não compreende seu estado de danação, incapaz de perceber qualquer perigo em sua condição por seu coração insensível (Ez 36:26)
Isaías afirma, “Somos como o impuro – todos nós! Todos os nossos atos de justiça são como trapo imundo” (Is 64:6). Qualquer impressão de boa obra que possamos gerar por nós mesmos é uma falsidade pois somos consumidos por um male terrível que impacta negativamente em todo o nosso proceder, pervertendo até mesmo a maior pureza ilusória porque “tudo o que não provém da fé é pecado” (Rm 14:23)
O Sínodo de Dort (1619) resumiu excelentemente a miséria da humanidade da seguinte forma:
“Todos os homens são concebidos em pecado e nascem como filhos da ira, incapazes de qualquer ação que os salve, inclinados para o mal, mortos no pecado e escravos dele. Sem a graça do Espírito Santo regenerador, não desejam nem tampouco podem retornar a Deus, corrigir sua natureza corrompida ou ao menos estar dispostos a essa correção” [8]
O profeta Jeremias conhecia a realidade da pecaminosidade tão profundamente que diz, “O coração é mais enganoso que qualquer outra coisa e sua doença é incurável. Quem é capaz de compreendê-lo?” (Jr 17:9). O próprio Senhor responde no verso seguinte ao dizer que Ele é o responsável por sondar o coração e examinar a mente, trazendo a recompensa de cada um de acordo com suas obras, tema retornado por Paulo (Rm 2:6). Se sabemos que nossas obras são apenas impureza e todos são incapazes de fazer o bem, devendo receber o que é devido ao nosso proceder como expressa o profeta, incorre-se que todos somos dignos da devida punição, a morte (Rm 6:23). É certo que Deus revela sua pertinente ira contra nossa conduta e desobediência do justo decreto (Rm 1:18,32) e por essa razão, examinará os segredos dos homens (Rm 2:16) e destinará os condenados a um lugar “onde o seu verme não morre, nem o fogo se apaga” (Mc 9:44), enviados para um castigo eterno (Mt 25:46) porquanto jamais permitirá entrar nos céus a contaminação (Ap 21:27). Tamanha é a seriedade do pecado que sua permanência afasta definitivamente o homem da presença de seu Criador.
Conclusão
Graça e paz a todos vocês,
Luigi Bonvenuto